Há muito que quase não paro por aqui. Passam-se dias e dias que não venho. Não procuro já sequer saber se me visitas. Creio que não voltarás e é escusado sentir que o meu coração se contrai. No momento em que conheci o destino de K soube. Foram as palavras, creio eu. O tom que as envolvia. Ou talvez a distância que traziam como o olhar de quem não acredita, ou quem sabe outras razões, posso encontrar tantas...Esse foi o momento decisivo, o dia da certeza de que tudo se passaria como eu previra. Tinha-o escrito já. Creio que com a esperança e a inocência de quem, revelando uma profecia, acredita que dessa forma não se concretizará.
Lembrei-me ainda há pouco da raposa do Principezinho e da importância que ela atribuía aos rituais. Um livro que me acompanha sempre. Tenho-o como uma espécie de Bíblia. É, julgo eu, o meu livro sagrado de quem não tem um Deus em quem busque amparo.
Também eu sou um animal de rituais e são eles que me permitem sorrir. É vital saber quando chegou o momento de vestir o meu coração. Quando não encontro um dia, uma hora, um momento em que o faça perco-me. Acho que acontece a todos nós se nos deixamos cativar.
Estranhamente há pessoas que entram em nós criando laços e vínculos quase inexplicáveis e depois fazem-nos falta, são como se fizessem parte de nós, e talvez façam. Ao longo de muitos meses vesti em vão o coração e quando soube que não voltaria a fazê-lo para ti andei um tanto desasada. Vestir o coração não custa nada, mas quando chega a hora de o despir as forças vão-se.
Os serões tinham deixado de ser apenas serões, como todos os outros. A minha caixa de correio ganhou música e o meu coração agitava-se sempre um pouco cada vez que ouvia o som da chegada de um email. Por isso, era tão importante saber da tua vida, por onde andavas. Permitia-me não vestir o meu coração inutilmente. Por isso, não paro por aqui nem em lugar algum. Permaneço tão pouco quanto posso no meu buraquinho. Passo a porta e já não oiço música, não encontro flores, nem o meu coração sorri na expectativa do momento. De repente ficou tão frio aqui... Talvez não volte a encontrar neste cantinho o meu conforto, o retiro onde o meu mundo se materializava e eu partia para uma outra dimensão ou, talvez, com o tempo, esqueça os rituais e tudo retome as cores de outros dias. Por agora, ando pela casa sem saber bem o que fazer e percorro a cidade a pé. Passeio sem me deter, nem reparo no caminho que tomam os meus pés. Vou escrevendo ao som dos passos que posso agora escutar claramente. As passadas chegam a recordar-me ritmos de músicas que entoam nos meus ouvidos, agora atentos, onde antes apenas soavam constantes zumbidos agudos que quase me enlouqueciam. Não levo música comigo, todas elas me trazem recordações, me comovem, e isso é tudo o que não pode acontecer-me agora. Oiço as vozes distantes de quem passa, distingo as palavras proferidas nas conversas que decorrem aqui e ali. Por vezes, ainda me baralho um pouco sem discernir com clareza de onde vêm os ruídos que fazem parte da minha vida ocupando o lugar do silêncio que me envolvia.
É assim que vou vivendo. Busco um lugar dentro de mim. E é verdade aquilo que li, de ti, um dia : "Quando se fica só é que se está mais com os outros (...) O outro que a "alma" atinge”.
Julgo que é para lá que caminha a minha alma. Vou largando tudo ao meu redor sem dor. Vou deixando cair as mágoas e já nada questiono, nem me insurjo. Pelo contrário, sinto uma enorme leveza na solidão que me rodeia. Usufruo, a cada dia, mais pacificamente da minha companhia. Sinto-me verdadeiramente livre. Não necessito de partilhas, dos afectos, que por não os encontrar me tornaram a existência tantas vezes quase insuportável. Vou-me preenchendo com as palavras que raramente escrevo mas que, contudo, ganham vida dentro de mim. São o tal “romance” onde habito e que jamais escreverei.
Não tenho tentado exteriorizá-la. Sei que estou impotente para o fazer. Só se escreve aquilo que nos agita, que mexe profundamente connosco. É preciso uma qualquer forma de paixão, uma intensidade e apego dentro de nós, que sentimos agitar-se do fundo das entranhas fazendo-nos vibrar, e que não encontro. De momento, fujo de todos os abalos, das comoções, das introspecções.
Quase não leio novamente, não oiço música e deixei de me importar. Não sofro com isso. Não quero emoções ao meu redor. Se deixo que me envolvam, não terei a paz e as forças de que preciso por agora.
Recordo bem a tristeza que senti naqueles Verões que passei só, quando todos se afastaram, e sinto hoje esse tempo tão distante, sem amarguras, nem tristezas. Aceitei e entendi que era mais feliz assim. Foram os primeiros passos que dei em direcção ao meu encontro.
Cortei o cabelo curto por não suportar mais olhar-me ao espelho. Era sempre o rosto dela que via. Deixei de trazer no dedo a sua aliança que há tantos anos me acompanhava diariamente e só tirava para dormir. Não a esqueci, antes, vive em mim de outra forma.
Creio que outro ciclo se iniciou. Quis torná-lo visível como fiz antes marcando a minha pele.
No primeiro dia que entrei no duche e não senti o cabelo caído acompanhando-me o pescoço e as mãos sem ter por onde deslizar, chorei amargamente. Tinha perdido uma parte de mim, algo decisivo, fundamental. Tive noção do significado e da profundidade do meu acto. Enxuguei-o depois com a toalha, passei-lhe os dedos, sorri e saí porta fora, com a leveza do vento de Outono.
Os fins-de-semana são agora tranquilos. Perdi aquela ansiedade que os antecedia e perdurava dias fora. Hoje, passam por mim e nem reparo. Nada me incomoda já. Respondo a tudo que sim. Desempenho o papel que tenho que representar e não mexo uma palha para além disso. A meio da noite, levanto-me, sento-me na varanda (ah! a minha varanda...), fumo um cigarro e deito-me no sofá da sala. Quase sempre demoro bastante tempo a voltar a adormecer mas recuso levantar-me. Se o fizesse, era para aqui que viria, para escrever. Se adormeço sonho muito. Sonhos confusos, rostos conhecidos que ganham outra identidade, lugares estranhos, acontecimentos do passado distorcidos.
Não sei se sou feliz assim. Não penso nisso. De nada me serviria, o caminho está traçado e não há retorno possível por enquanto.
Julgo que pairo pelos dias, não querendo recordar o passado e pensando, devagarinho, quase a medo e em silêncio no que farei com o tempo que me espera. Vou construindo o meu futuro. Vivendo o que viverei um dia.
Não há nada de profundo em meu redor, fechei todas as portas a tantas questões existenciais que me mergulhavam em angústias.
Vou fazendo cada vez menos falta. Julgo que isso me alivia em certos aspectos. Ao mesmo tempo voltei a viver para FL quase com a mesma exclusividade de outros tempos e quase sem reservas já. Saboreando os momentos que sei que em breve farão parte do passado.
Olha o "it"...!? Eu cá ainda estou nos ovos. Com sorriso, mas nos ovos.
ResponderEliminarPensas tu que estás nos ovos. Eclodiste! Sorridente. No ovo fica o tempo estagnado. Nessa taberna tudo está em movimento.
EliminarLagartixa:
ResponderEliminarCreio que já te dei, por mail, a minha opinião sobre este teu trabalho. O que tenho a acrescentar, olhando para o lado direito da tua página, é que tudo se completa.
Escreveste um texto deixando que as coisas fluissem sem dares a menor importância ao que de ti ia saindo. Dá a impressão que te ausentaste de ti para te veres melhor. Isso também me acontece.
Mas há isto que me faz pensar:
"Não sei se sou feliz assim. Não penso nisso. De nada me serviria, o caminho está traçado e não há retorno possível por enquanto."
Tem piada que também não sei se sou feliz. Normalmente, não penso nisso! Conscientemente, não é esse o meu objectivo na vida. Mas, não quero falar sobre mim. Eu só queria entender este teu " Não há retorno possível!"
É muito forte o que escreveste. Aliás, todo este trabalho dissecado, daria muitas páginas.
Estou aolhar para uma cadeira que tens num quarto azul. Imagino-te aí sentada. As palavras que escreveste, dentro de um sofrimento disfarçado de acomodação, são aquele vidro que se quebrou e que falta no quadro que está na parede.
..................................Beijo-te a abraço-te com carinho
Isabel
"Conscientemente, não é esse o meu objectivo na vida." Qual é o teu objectivo de vida, Isabel?
ResponderEliminarSabes, estava aqui a pensar. A felicidade é um conceito muito vago. São pedacinhos da vida. Julgo que não é esse também o meu objectivo de vida. Talvez nem pudesse ser. Eu, sou eu e sou o outro. Eu vivo o meu eu e vivo o eu do outro. O outro podem ser muitas pessoas, aquelas que nos tocam. Eu vivo através do outro também, das suas palavras, do seu estado de alma, das suas alegrias e tristezas. Eu não me esgoto em mim.
Também não posso sentir pedacinhos de felicidade se não conhecer tristezas. Sem elas, a felicidade também não fazia sentido. "Não sei se sou feliz assim", sei que naquele momento em que escrevia, não sentia a força com que as vagas por vezes insistem em lançar-se contra nós. Sentia alguma paz, como quem se passeia, olhando para dentro, alheio ao mundo que não carrega nos ombros por momentos. Não sei se sou feliz assim, mas talvez aquela leveza, mesmo que efémera, fosse paz e a paz é uma das cores da felicidade. Não será?
Este vai ficar para amanhã. Já é muito tarde e amanhã é dia de trabalho. Quando voltar, será por aqui que vou começar: pela felicidade.Espera por mim que eu venho.
ResponderEliminarCá te espero.
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