segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

BARROS, UM VELHO

"Movimentou-se desconfortavelmente na cadeira, ao ouvir aquela pergunta, tantas vezes formulada.
V. acha, não, espera aí, me fala a verdade amigão, v. acha que está ficando velho?... Quer dizer, um velho mesmo?...No duro?...
Não, pensou ele, não acho, só tenho certeza, contemplando as próprias mãos pousadas na mesa do bar. Aquelas mãos, outrora bonitas, fortes e quadradas, “as mais bonitas mãos de homem que ela já vira”, dissera uma vez Lili Abelha, uma sofrida lésbica sua velha conhecida, há muitos anos atrás. Que fim teria levado aquela figuraça?...
Agora, os dedos torciam-se em torno do seu eixo, os nós engrossados, a mesma artrite deformante que sua avó tivera e da qual tanto sofrera.
Mas seu interlocutor insistiu. Era tão velho quanto ele, e tossia regularmente, uma tosse seca, irritante, embora não deixasse de pitar seu cigarrinho.
Mais ou menos, respondeu, só para dizer alguma coisa.
Estava mais disposto a meditar que conversar. Há algum tempo começara a se dar conta das impossibilidades que vinham ferir seu ego, a dificuldade cada vez maior em se levantar de uma poltrona, de andar mais depressa, de raciocinar mais rápido, de achar graça em bobagens, de se manifestar mais pacientemente sobre algo que o contrariasse. Estava cada vez mais propenso a ficar em casa, já não gostava tanto de sair, visitar os poucos amigos...Era tudo tão mais difícil, tão dura e exasperantemente mais difícil! Sentia-se uma múmia em processo final de embalsamamento.
A coluna lombar, dantes ignorada, agora gritava desaforada a sua presença, e às vezes só se calava à força de relaxantes musculares.
Os olhos o enganavam, traziam-lhe imagens que ele sabia não estar ali, a misturar-se com lágrimas inoportunas, seja porque os olhos eram agora emoldurados por pálpebras eternamente inflamadas, seja por um sentimento pungente de saudade, que não ousava confessar.
Um lenço, um par de óculos, seus comprimidos sublinguais para a angina, a carteirinha do plano de saúde (caro, muito caro, mas que ele não podia deixar de pagar, senão nunca mais conseguiria ingressar e pagar um outro), eram seus companheiros obrigatórios, junto com o vale transporte e o parco dinheirinho de bolso, se se arriscava a ir ao bar do Malaquias, sua única fonte de entretenimento, como agora.
Voltou a prestar atenção no amigo.
...e o Aristides, veja só, o Aristides! Agora está muito feliz, transando com a sua eterna e conformada noivinha quase todos os dias... Adaptou-se, agora vira pra cá, vira pra lá, não tem mais o vamos fazer uma força e se der....
Não estava entendendo aquilo, o Aristides, diabético grave, há muito não sabia o que era uma relação sexual...
Estás falando do nosso Aristides? Adaptou-se? Vira pra cá, vira pra lá...O que diabos você está dizendo?
Claro, homem, de quem mais? Está feliz da vida com a prótese que lhe colocaram!
Prótese do quadril?...
Acorda, homem, alguém lá transa com o quadril, filho de Deus! Estás esquecendo de tudo? Prótese pe-ni-a-na, caramba.
Deus do Céu, mais um louco à solta neste mundo...
Barros lembrou-se de ler numa revista um artigo sobre isto, mas limitara-se então a abanar a cabeça, descrente. Era só o que me faltava!...
Contemplou o copo de cerveja, já morno, à sua frente.
Hoje a Medicina vai muito adiantada, há progressos maravilhosos todos os dias, anunciados nas páginas dos jornais, na TV, a tal de engenharia genética, ADN, sei lá mais o que, os caras intervém nos cromossomos dos fetos, uma loucura...
Sentiu uma dorzinha safada no braço esquerdo, mas fingiu que não era com ele. Pediu outra cerveja.
Na parede, ao lado da mesa, um espelho cheio de dizeres em alvaiade, a letra floreada: eram os pratos do dia; entre o tutu de feijão e a dobradinha, conseguiu ver seu rosto. O que viu deixou-o triste, ainda mais triste. Era uma fisionomia cansada, abatida, desencantada. Não era uma fisionomia em paz.
Pôs os óculos, para se ver melhor (ou pior, pensou) e depois de um esforço de lembrança e uma enxugadela naquelas lágrimas irritantes, conseguiu ver no fundo do espelho a face que tivera aos dezoito anos. Deus, que diferença...
Quem é que em sã consciência poderia dizer que a velhice era a coroação de uma existência?...
“Nossas roupas comuns dependuradas na corda qual bandeiras agitadas pareciam um estranho festival...”
Assim como a vida nas favelas, carentes de tudo, assim como na velhice, carente de tudo e de todos...
A velhice é uma tristeza, eu odeio a velhice, eu, Barros, não a aceito de jeito nenhum! Levou o copo aos lábios, merda, porque toda a vez tinha de pingar na camisa?...
Bota o babador, Barros, divertia-se o amigo, e logo danava a tossir sem parar.
Não vou bater nas tuas costas, senão V. é capaz de desmontar, e eu nunca fui bom em quebra-cabeças...No Natal me lembra de te dar uma bolsa de lona daquelas grandes, de sacoleiro do Paraguai, para levares um lençol...Porquê este teu lenço é brincadeira pra tanto catarro..
Era sempre assim, desde que se conheceram, há mais de trinta anos, sempre achando um jeito de se gozar mutuamente. Examinou o paletó amarfanhado do amigo _ (ele não admitia sair de casa sem aquilo,) e notou uma ponta branca saindo da parte de dentro, à altura do peito.
Ei, mas o que é isso, temos aqui um envelope? O endereço de casa pro caso de se apagarem alguns poucos neurônios pombos-correio que ainda acaso tenhas?...
O amigo alisou distraidamente o envelope já meio amarrotado, como se ali guardasse algo muito importante.
Isto?... É o meu testamento, Barros, o meu testamento...
Mas que conversa é essa, V. anda por aí com um testamento nas mãos? Que raio de companhia V. é? Parece mais um papa-defuntos... Sai pra lá! Bateu três vezes na madeira. Além do mais, V. nem tem herdeiros e muito menos o que deixar...Testamento! Está gagá, gagá mesmo...Espetou o dedo no ar, ajeitou-se na cadeira e fulminou o amigo:
Em vez de pensar em besteira, V. devia andar é com a receita do Dr. Anselmo debaixo do braço...Já estamos há horas neste boteco, e não vi V. tomar nenhum remédio.
Ora! Remédios e médicos! Que o diabo os carregue a todos!
Ah! Sim, claro, mas na hora do sufoco, lá na sua cama, V. fica bem mansinho e engole as poções como se ouvisse música celestial...
Barros, Barros! Vê se não me aporrinha mais, homem! Eu não gosto de tomar remédio, passei grande parte da minha vida sem saber o que era uma injeção, uma febre, uma dor de cabeça...
Ah! Sim, guardou na poupança para a velhice...(risos), né?...
A dor no braço voltara, uma agulhadinha fina, insidiosa, e Barros disfarçadamente abriu sua caixinha e pescou um comprimido minúsculo. Queria distrair a atenção do amigo, para não ter de receber de volta a gozação que levaria ao colocar na boca o remédio, mas o infeliz, debruçado sobre a mesa, fitava-o intensamente com olhos abatidos de cão perdido:
Velho Barros de guerra, que não vai a médicos nem toma remédios...qual o seu segredo? Soro de macaco?... Veterano da clínica da Dra. Aislam?...e cacarejava, mostrando os poucos dentes que sobraram de tanta ida a dentistas de hospitais públicos, só para sofrer, indefeso, a chamada arrancoterapia.
Tentou distrair a atenção do amigo, tinha de tomar o tal comprimido, a dorzinha já começava a aumentar. Antes só aparecia quando se movimentava apressadamente, que ele não sabia se arrastar defensivamente pelas calçadas, como um velho, ele que não aceitava a velhice, mas agora a dor aparecia até quando estava apenas sentado, como ali.
Logo achou a desculpa que precisava:
Espera aí, toma este teu licor de chope que agora eu vou ao mictório...
Outra vez? Mas V. foi há vinte minutos!...
Ora não chateia, V. agora é fiscal dos meus rins?
Ta bom, ta bom, aliás é uma boa idéia...Eu também vou esvaziar o reservatório, tirar água do joelho, como diz a patuléia...Ah!Ah!Ah!..
Dentro do banheiro, só acessado espremendo-se o corpo por um corredor lotado de engradados empilhados de cerveja, infecto como quase sempre, o chão imundo e mijado, um espelho imundo e quebrado em cima da pia que já fora branca um dia:
Mas V. não queria urinar? Porque agora quem quer sou eu, pombas! Vai ficar aí segurando o falecido até o bar fechar?
Barros desistiu de simular, recuou, pôs o maldito comprimido na boca, mas o amigo suspirava, fazia trejeitos, balançava-se pra frente e pra traz, de olhos fechados, como em transe, e nada de urinar.
Ué, V. não estava me apressando? E então? Vai baixar o santo, velho?
Espera...arf...está vindo, está vindo...aiiiiiiiiihhhhhhhh!............
Cruzes, que vitória, hein? a coisa está assim tão ruim?...Ajudou o amigo a sair do banheiro e encontrar o caminho da mesa.
De volta à trincheira, Barros perguntou ao amigo:
V. não foi ao médico desses troços, pra ver isto? Não deve ser a tal de próstata?..
Olha, eu fui há alguns anos atrás, não queiras passar por aquilo. O urologista, palavra de honra, tinha um dedo que mais parecia uma caneta Montblanc das graúdas, me escarafunchou lá dentro, me senti um merda, dá pra entender?
E aquela posição humilhante, ai meu Deus do céu!...Mas disse que eu tinha um pequeno aumento, nada preocupante, que voltasse dentro de um ano...Não me disse pra tomar nenhum remédio, graças a Deus.
Aí V. ficou frustrado, hein?, Só um ano depois! Teu ano depois tem quantos dias? Alguns anos atrás...Era a vez do Barros cacarejar.
É, seu gozador, mas nunca mais eu fui a ele ou outro urologista qualquer!
Nunca mais, e então não achas que agora bem que estás precisando?
Não, eu vou levando, se for pra ir ao urologista, só se for pra botar aquela engenhoca do Aristides...
E pra que V. quer botar como é o nome? prótese? Um velho feio como V., só ia assustar as moças, iam pensar que era algum unicórnio fugido de um filme de terror! Barros retorcia-se de rir, e o amigo ficava roxo de raiva, sem saber como replicar.
Tomou um outro gole, parecia que estava saboreando um licor, bem parcimoniosamente. V. precisa se cuidar, amigo velho! a vida já é essa chatura pra nós de idade, com sofrimento de urina é muito pior, ora bolas! De urina ou qualquer outra coisa, aliás...Tanta estória escabrosa que a gente ouve por aí...
É verdade, é verdade, mas eu tenho tanto medo de sofrer...Porquê eu já passei por poucas e boas, amigo...
Barros comoveu-se. Aqueles dois velhos, sem família e sem esperanças, aguardando o que?, Um pequeno aumento nas magras aposentadorias, dado, às vezes, com rosnados de revolta e impaciência por parte daqueles governantes, homens moços ou quase velhos que detinham o poder, a maioria com seu presente e futuro garantidos por truques e artimanhas, coisas que eles dois não entendiam, como a tal de aposentadoria especial após oito anos de mandato dos políticos, por exemplo.
Aposentadoria especial por insalubridade, por acidente provocando incapacidade para o trabalho, tudo bem; aquilo eles entendiam, inclusive haviam participado da segunda guerra mundial, tinham sido pracinhas na Itália, mas depois, felizmente ilesos, voltaram a trabalhar em suas profissões de origem, até completar os prazos de lei para aposentadoria. E agora? Aposentadorias mixurucas, congeladas com o restante dos salários do funcionalismo, total falta de sensibilidade dos governantes deste pais, que detestavam, ignoravam, desprezavam os velhos...Quanta falta de respeito, quanta desconsideração nas filas quilométricas, nos postos de atendimento médico, nos guichês dos bancos, nas calçadas sem acessos para deficientes físicos, tratados como bichos, colocados pra esperar a morte em antros imundos e abandonados, disfarçadamente intitulados de Centros Geriátricos, onde eram internados mais para morrer de fome e a mingua de remédios, apenas antros de eutanásia de velhos, moeda fácil para o enriquecimento de escrotos gordos, parasitas, que só visavam enriquecer às custas do INSS. E dizer que muitos deles ostentavam até diploma de médico!...
Além das histórias veiculadas pelos jornais, revistas, rádio e televisão, Barros sabia de um sem numero de casos chocantes, uns por ouvir dizer, mas a maioria eram casos em que os infelizes personagens centrais eram amigos, parentes e contemporâneos seus. Ele era uma testemunha de seu tempo, e sofria com isto, e com a impunidade que campeava. E ninguém ligava, parecia que a sociedade estava anestesiada...desinteressada, era cada um por si...
Que raio de sociedade esta, que consumia avidamente o noticiário, rosnava enfurecida ou compungida, e no dia seguinte encontrava outros assuntos, outros dramas com que se distrair, e se esquecer completamente dos do dia anterior? Então tudo de ruim que acontecia era entretenimento, apenas? Alimento para as televisões, espaço pra vender jornal?...Só pra engordar a mídia?
Que políticos estes que nós temos, a cuidar sempre do seu próprio interesse em primeiro lugar, com tanta negociata e da forma mais vergonhosa e sem limites de decência ou pudor? Mateus, primeiro os teus?...
Que código penal o nosso, que instrumentos estes usados na repressão e prevenção dos crimes, todos incrivelmente benévolos, cuidando preferencialmente do bem estar dos marginais, em detrimento das pessoas de bem?
Que direitos humanos eram aqueles, voltados para a pseudo-recuperação de criminosos, criminosos de todos os quilates, de todos os graus de periculosidade, de todas as idades, ignorando os traumas infligidos às vitimas (quando tinham sorte de sair com vida), ou senão o que dizer das suas famílias, desamparadas e desesperadas?...
O que era aquela tal lei que rezava que os criminosos primários deviam gozar de liberdade por serem estreantes na modalidade, e deveriam responder ao seu processo criminal fora das grades? Fosse qual fosse o que fizessem, o grau de monstruosidade do ato praticado?..
Quer dizer que o primeiro assassinato equivalia ao meu primeiro sutiã? Será que a vitima concordava com esta deferência de tratamento para com os seus algozes? Ou a família, em busca inútil de paz (que sabe nunca mais terá), lembrando eterna, sofrida e compulsivamente da perda?
Barros achou melhor parar de pensar naquilo, a nada o levaria, senão a um ataque cardíaco, ou um derrame, na melhor das hipóteses. Olhou para aquele velho à sua frente, quase ou mais que um irmão, tão frágil e desamparado, assoando estrondosamente o nariz intumescido e tentando disfarçar as lágrimas que teimavam ainda em brotar.
Olha, amigão, as coisas ainda vão melhorar nesta terra...Vamos ter um tantinho de fé, um tantinho de paciência, que a gente chega lá, caramba!
Agora que os homens seguraram a danada da inflação, que comia nossas pensões, nosso dinheirinho já está durando um pouco mais, não é mesmo?
É verdade, Barros, e V. sabe o que eu li no jornal de hoje, o governo vai dar uma dura nestes planos de saúde, acabar com um monte de bandalheiras que eles vêm fazendo com os associados, como a tal de revisão dos preços só porque entramos na faixa da velhice, que pouca vergonha! Justo quando precisamos de mais apoio, gastamos mais com remédios, eles nos jogam no buraco...
O velho estava radiante como se aquilo fossem favas contadas, até parecia que era um grande freqüentador de consultórios e ambulatórios, o cretino...
Barros e o amigo trocavam apertos de mão, sorrisos de felicidade.
Em quarto escuro fósforo aceso é luminária...
Manuel, o garçom habitual dos dois, olhou aquilo e pensou com os seus dedos dos pés doloridos:
-Velho é uma coisa linda! Parece criança, emburra, zanga e no momento seguinte está doce, doce...abanou a cabeça, enternecido.
Acordou para a realidade com o brado do gerente:
-“Manuel, mais três chopes pra mesa seis...e duas poções de batatas!...no capricho!”"

Sérgio Rebouças

1 comentário:

  1. Comentar para quê? Sentimento, sentimentalismo, sensação...tudo faisandé, tudo ultrapassado, robocoptizemo-nos todos...Isto aí encima nunca existiu, são delírios e fantasias, a vida é moderna, movida a bytes, o que vale são os dias away...

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