domingo, 23 de dezembro de 2012

A alma também se escreve

Acabara de o ler e não podia descrever o que sentia. Não sabia como fazê-lo. Correu para o duche para escapar às suas palavras que a prendiam com tamanha intensidade que se permanecesse perderia toda a contenção que prometera manter, mantendo-se em silêncio.
Aquelas palavras que ali estavam eram suas, eram as palavras que não soubera dizer. Não saberia nunca dizê-las como ele. Era como se ele tivesse entrado dentro dela enquanto dormia e lhe levasse os pensamentos que não pudera escrever. E, curiosamente, toda a noite sonhara com ele. Toda a noite ele andara em seu redor, sem nunca se aproximar. Tinha tão nítida a sua imagem. Circulando, sempre ao largo, e ela sentindo a todo o instante a sua presença, vendo-o, seguindo-lhe os movimentos. Ouviu-lhe a voz mas não era com ela que falava. Não lhe dirigira uma só palavra e, no entanto, era a si que elas se destinavam, chegando-lhe pela voz de uma mãe, a sua mãe.
Estranho sonho. Estranho o que a ligava a ele.
Escrevia a sua alma, como se a lesse e, contudo, nunca lhe vira os olhos e só através deles poderia entrar no que mais fundo em si guardava.
Lia-o e vivia nos teus textos. Viajava neles. Poderia ser ela a proferir aquelas palavras se os seus dedos soubessem ir tão fundo e a sua boca pudesse ensinar-lhes como se escreve assim, mas seu coração não sabia explicar-se.
Entre ela e ele havia um profundo encontro e um oceano de distâncias.
Pensava nos seus olhos e voltava a sentir que ele a lera.
Há dias que a perseguia a ideia de que jamais os verei. Seria pó sem nunca encontrar os olhos que escreviam a sua alma. Não chegaria a saber que palavras proferiria o seu coração ao tropeçar naquele  olhar que se metia por si adentro.

6 comentários:

  1. Lindo texto, Lagartixa, mas é preciso lembrar aqui que existe o método Braille, que também depende, e só, das pontas dos dedos!

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    1. As pontas dos dedos também pode ler a pele...e a pele é o revestimento da alma.

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  2. Revestimento efêmero, pois que descama totalmente várias e várias vezes ao longo de nossas vidas...mas valeu a poesia...

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  3. Tens razão Hesseherre, mas também os nossos estados de alma são efémeros e também a nossa alma "descama" ao longo das nossas vidas, por isso, crescemos. Cada vez que a vida nos possibilita essa renovação crescemos e tornamo-nos mais sensíveis.
    Repara só o que aconteceria se a pele dos nossos dedos não escamasse; endurecia, perdia toda a sua sensibilidade. Como poderias sentir como é fina e delicada a pele de uns lábios? Ou como é agradável deslizares os teus dedos em outros dedos?

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  4. Eu não chamaria a isso descamação da alma...a alma é um pedaço de ENERGIA que nos penetra a partir da junção espermatozoide óvulo, e nos abandona - corpus fragilis - quando nossa estrada chega ao seu final.

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    1. E durante todo o caminho estrada fora? Não nos vamos renovando, caido e levantando? Ferindo e sendo feridos, amando e deixando que nos amem? A nossa alma se não descama, pelo menos ganha uma qualquer outra coisa que nos permite absorver tanto ao nosso redor.

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