sexta-feira, 13 de julho de 2012

Remexendo no passado....

Começou a morrer dentro de mim no dia em que me mandou entrar na ambulância com a minha mãe e chegou a Lisboa não sei quantas horas depois de nós. Deixou-a aos meus cuidados, sem que eu soubesse o que fazer, que quantidade de oxigénio lhe dar. Deixou-nos às duas como tontas pelos corredores daquele hospital sem conseguir falar com o médico que supostamente nos receberia e sem conseguir alguém que desse oxigénio à desgraçada. Era preciso uma maldita cadeira de rodas que não arranjávamos. Ela não podia andar com a falta de ar, piorara terrivelmente de um dia para o outro, não tinha dormido, estava muito fraca e eu não a queria deixar sozinha, mas era preciso uma cadeira. Depois foi a papelada; ela sufocava e eu preenchia papéis. Quando me enervo fico aparvalhada, não raciocino, bloqueio. Não conseguia escrever, despachar-me com aquilo. Quanto mais me enganava, mais me culpava e mais disparates fazia.
Andámos de um lado para o outro, de corredor em corredor, acho que horas, não sei. Recordo que ora tinha oxigénio, ora não tinha, numa agonia atroz. Às tantas estávamos enfiadas num cubículo abafado, nojento, deprimente para que vestisse aquelas batas que quase nos deixam nus, como se ela tivesse capacidade para respirar quanto mais para se despir e vestir, mesmo com a minha ajuda. Não me lembro de nada tão aflitivo, tão humilhante, tão desesperante. O olhar da minha mãe era de profunda angústia e aflição e desespero e eu não conseguia fazer nada. Acabei por rasgar a roupa que levava vestida para lhe poder enfiar o trapo verde (ou seria azul? Não me lembro). Sem a conseguir levantar, tapei o que era possível tapar do seu corpo.
E o médico estava em reunião e não aparecia. E eu só pensava que raio de amigo era aquele. Ele trabalhava lá, tinha que saber como aquilo funcionava, tinha que largar a merda da reunião e vir em socorro da amiga. Ainda por cima não tínhamos entrado pelas urgências por indicação dele, para que não nos perdesse o rasto e tinha a lata de não aparecer. Odiei-o tanto e tanto.
Odiei mais ainda o meu pai que andava sabe-se lá onde, comodamente sentado no seu carro, enquanto a minha mãe sofria ali horrores, destilava de calor e falta de ar. Ele também era médico. Ninguém lhe vedaria a entrada. Em meia dúzia de minutos teria resolvido o que eu e a minha mãe tínhamos demorado uma eternidade para resolver. Nunca mais lhe perdoei.
Não me lembro já como, nem ao fim de quanto tempo, ela acabou sentada numa maca e a levaram aos baldões não sei para onde. À medida que a via afastar-se, esperava a todo o momento que caísse porque não tinha forças para se agarrar e não se podia deitar por não conseguir respirar. Não me deixaram passar. Não piei mas quase caí redonda no chão de dor e medo.
Não sei quanto tempo depois o meu pai apareceu, nem sequer recordo como me encontrei com ele. Sei que era já o fim do dia e que tínhamos saído de cá de manhã.
Julgo que ainda vimos o médico nosso amigo mas não tenho a certeza. Nessa noite, já instalados, ele telefonou a dar notícias e eu percebi que o meu pai estava a recusar a oportunidade de ir ter com ele ao hospital para vermos a minha mãe, dizendo que iríamos no dia seguinte. Aí irritei-me a valer. Até então tinha estado calada, não lhe dissera nada apesar de toda a raiva que sentia. Bati o pé e exigi ir vê-la.
Quando chegámos ao hospital as notícias não eram boas. Tinha tido um ataque de tosse. Tiveram, por isso, que a ventilar para que não morresse, estava sedada e nos Cuidados Intensivos. Teria sido a melhor coisa que lhe poderia ter acontecido, morrer naquele dia, mas não, como Deus é grande e ela só estava em agonia há uns dez anos, a mão caridosa do Senhor, ainda a fez penar mais uns meses.
Consegui vê-la e nem comento o aparato. Dali, o meu pai despejou-me à porta de casa, comigo lavada em lágrimas, e desapareceu. Desapareceu do meu coração também. Durante os meses que estive em Lisboa, não houve um único dia em que aquele homem não me desse uma facada com as atitudes que tomava.
Não houve um único dia que me tivesse perguntado se eu precisava de alguma coisa. Eu fui para cima com a roupa que tinha vestido, não levei mais nada para além disso e de uma disquete com um trabalho que tinha que entregar no dia seguinte. Nem banho tinha tomado.
Logo, logo, ainda me doeu, mas rapidamente percebi que não haveria nada a esperar, nem compreendia sequer como eu esperara ainda o que quer que fosse. Tive que lidar com ele como se faz com uma criança teimosa e caprichosa e obrigá-lo quase a ir ver a minha mãe e a falar com os colegas. Por fim, conseguimos que anuíssem em não a reanimar em caso de paragem cardíaca, já que recusaram desligar as máquinas e insistiam barbaramente em tentativas incompreensíveis para nós, os filhos, de a desventilar.
O funeral do meu pai foi no dia dos meus anos e raramente me lembro disso. Recordo-me que tinha pressa de vir para casa porque o meu filho, com um ano e pouco, tinha cá ficado com o pai e eu nunca me tinha separado dele antes, nem dormido fora de casa sem ele. Não me lembro do funeral em si e só muito vagamente de algumas pessoas que lá estavam. Se não fosse pelos meus irmãos, eu nem sequer tinha lá ido.
E não é que o detestasse porque não detestava, nem detesto, antes o detestasse porque isso quereria dizer qualquer coisa.
Punha-me, às vezes, a olhar para ele e parecia-me irreal que aquela pessoa pudesse fazer as coisas que fazia. Não compreendia naquela altura e continuo, hoje, a não compreender: não entendo como é possível ser-se tão indiferente, tão frio, tão, tão, tão, tanta coisa. Tive por diversas vezes, tantas vezes, vontade de o sacudir com todas as minhas forças e gritar-lhe: Como é que é possível que tu não vejas, como é que é possível que faças o que fazes. Porra, mete-se pelos olhos adentro, é tão básico, é tão simples, tão, tão, instintivo. Tu não és estúpido, tu não és burro, então olha, vê, sente, caramba. Como consegues ser assim?
Se quando eu morrer o meu filho não contar a alguém que não tem saudades minhas é porque, talvez eu tenha aprendido alguma coisa nesta vida e tenha aos seus olhos, pelo menos, pelo menos, tentado que ele me desculpe dos erros que eu cometo.



3 comentários:

  1. Lagartixa, explica-me que há aqui uma coisa que não entendo. A tua mãe é que estava doente e tu falas do funeral do teu pai. Depreendo que a tua mãe tenha morrido primeiro do que ele. Mas, há aqui um salto e eu tenho dificuldade em ligar os factos. Possivelmente não queres falar desse assunto.
    Acho que tenho mesmo que passar por aqui mais vezes.
    Só mais uma coisa. Se te custa falar, não fales! Abraço-te!

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    1. A minha mãe morreu quatro anos antes do meu pai. Após a morte dela o nosso relacionamento não resistiu. Ainda tentei segurá-lo mas não consegui. Falávamos linguagens diferentes. Não creio que ela se tenha esquecido de mim, mas era quase como se assim fosse. Quase não o via. Mudou de terra. Só o fui visitar quando me telefonou a dizer que não tinha safa possível. Decorreram dois meses desde o diagnóstico até à sua morte. Já lá vão muitos anos.
      Sei que sofreste muito com a perda do teu pai. Não tive coragem de te tocar no assunto. Não sabia se era algo recente. E levei muitos anos a digerir a morte da minha mãe, lenta, meses de internamento. Conheço a tua dor. Acanhei-me por isso. Abraço-te.

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    2. * Não creio que ELE se tenha esquecido de mim. Desculpa, enganei-me.

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