segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Abraçosbeijosabraços

Gostava de pensar que nada fora ao acaso. Na verdade, não havia nada de transcendente em tudo aquilo.
A explicação era assustadoramente simples. Ele chegara a si com um propósito. Viera acordá-la para a vida, sacudí-la da dormência em que se encontrava sem que se desse bem conta disso. Chegara, com todo o seu encanto e dissera: "Vamos lá menina, está na hora de acordar, é preciso despertar. Onde está essa alegria? Que é feito do brio? Vamos, vamos, a vida espera por ti! ". Ainda hoje o brio se mantinha graças a ele. As formas e os contornos haviam sido retomados e isso fazia-lhe bem. Já não se esquecia do perfume. O duche voltara a ser inspirador e, inspirado por ele, mantinha-se um enorme prazer. Sabia-lhe bem deixar-se ficar ali debaixo da água quente, e os pensamentos e as sensações escorriam e percorriam-na. Depois, revigorada, ainda que encharcada de saudades, enxugava a tristeza que por vezes a inundava, sacudia os pensamentos, como quem sacode os cabelos molhados, retendo apenas os mais agradáveis, abria a janela, e inevitavelmente sorria, pensando que talvez ainda hoje o seu cheiro lhe chegasse, atravessando o oceano, e entrando-lhe pela janela.
Depois, o dia tinha que prosseguir com todos os seus afazeres, as tarefas da casa, as de mãe e ainda os trabalhos. Mas tudo se tornara leve e mais agradável. Entre a sopa e as camas surgiam pensamentos e ideias e tantas coisas que tinha para lhe dizer. Antes, corria para o computador e partilhava-os com ele, agora, era como se ele estivesse a ouví-la pensar. E não conseguia parar de pensar ... e de sentir ... e de sentirpensar e de pensarsentir. Não podia passar sem as palavras que lia e que escrevia. Não podia passar sem a música que ouvia a toda a hora. Este fora o milagre que ele desencadeara nela. Talvez tivesse sido um anjo da guarda que o enviara, costumava pensar. E, quando algo em si se tentava revoltar por tê-lo perdido, sossegava-se a si própria tentando convencer-se de que ganhara tanto e tanto que não tinha o direito de pedir mais. O seu amor partira, talvez o anjo o tivesse vindo buscar, e fizera bem, talvez até o tivesse deixado permanecer tempo demais. Às vezes perguntava-se se não teria ela sido terrivelmente egoísta deixando-o ficar até à exaustão. O tempo voara. Fora tanto e tão pouco. Tanto na intensidade, tanto naquilo que ele lhe dera e lhe ensinara e tão pouco para a quantidade de coisas que tinha ainda para partilhar com ele.
A vida tinha que prosseguir, as opções, ainda que tantas e tantas vezes as questionasse, tinham sido feitas há muito. Não poderia abandonar o caminho traçado. 
Lembrava-se de um dia ter dito que não poderia morrer sem lhe cair nos braços e não poderia morrer sem lhe beijar a boca e não poderia morrer sem o olhar nos olhos e passar os dedos pelos seus cabelos, sentir o seu cheiro e tocar nas sua mãos. Não poderia morrer sem lhe sentir a alma. Sem que a alma dela e a alma dele e o corpo dela e o corpo dele fossem apenas um só, nem que fosse por um dia, nem que fosse por um instante. Isso dera-lhe ânimo, fazia-a pensar que poderia ter sonhos.
Agora, porém, já nada importava. Ele tratara de rebentar com eles.

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