De repente foi como se tivesse apanhado um esticão. O seu coração deu um pulo e deve ter sido forte porque lhe doeu. Já lhe acontecera outras vezes sentir algo semelhante. Fazia lembrar um abalo. Era como se não fosse ela que ali estivesse e, ao mesmo tempo, aquilo que sentia era tão real. De imediato olhou para o filho deitado ali ao seu lado. Dormia profundamente. Tinham um trato. Ao domingo podia dormir na sua cama. Se ele não estivesse ali teria ela corrido para junto dele.
Viu-se no lugar de Sil e viu o gaiato segurando na sua mão enquanto o ouvia muito ao longe. Ficou sem fôlego, sem pinga de sangue. Nunca tinha sentido a morte daquela forma. Nunca tinha imaginado um cenário assim, nem lido nada que lhe causasse uma sensação daquelas.
Não se lembrava de a morte representar para si uma preocupação; a sua morte, porque a dos outros sempre lhe causara um profundo transtorno. Não sabia como lidar com ela. Mas a sua não, não a preocupava nada. Assustava-a a morte lenta, sofrida, aquele padecimento, a degradação, a dor física, o arrastar dos dias de sofrimento, mas a morte em si não. Não se recordava de a ter temido.
A morte começara a meter-lhe medo quando o filho nasceu. Não fora de imediato, antes um sentimento que ia crescendo à medida que crescia o seu instinto maternal, à medida que ia tendo consciência de que ele precisava de dela. O instinto maternal e o medo da morte foram-se apoderando de si gradualmente e em conjunto, de mãos dadas.
A morte começara a meter-lhe medo quando o filho nasceu. Não fora de imediato, antes um sentimento que ia crescendo à medida que crescia o seu instinto maternal, à medida que ia tendo consciência de que ele precisava de dela. O instinto maternal e o medo da morte foram-se apoderando de si gradualmente e em conjunto, de mãos dadas.
Às vezes, quando ouvia as outras mães falarem do nascimento das suas crias, pensava que talvez não fosse uma pessoa normal. Não sentira nada daquilo. O seu primeiro pensamento quando viu o filho foi que era feio e cabeludo. Julgava ter inclusivamente ficado um pouco decepcionada. Não era nada uma coisa daquelas que estava à espera que saísse de dentro de si. Depois, olhava para ele e pensava que raio iria ela fazer com aquilo? Não sabia como se cuidava de um ser tão pequenino.
Os dias foram passando e ela sabia que tinha que cuidar dele porque era tão indefeso, tão desprotegido, dependia de si. Mas não sabia ao certo se os sentimentos que lhe inspirava diferiam muito do que sentira outras vezes quando arrebanhava na rua os cães abandonados e os levava para casa, enlouquecendo a sua mãe. Comovia-se com seu abandono, doía-lhe pensar que tinham fome, frio, que lhes faltava um dono, um colo, um mimo. Olhava para o filho e ficava feliz de vê-lo confortável, quentinho, no berço, sabendo que teria quem cuidasse dele e ela faria o melhor soubesse. Era impossível não se emocionar olhando para ele. Começava a achá-lo bonito. Não sabia se aquilo era instinto maternal. Tinha medo que se engasgasse durante a noite, tinha medo da morte súbita, que adoecesse e ela não percebesse, de não entender porque chorava. Havia muitas coisas que lhe causavam pânico. Talvez fosse isso que não deixasse espaço para outros sentimentos.
Com o correr do tempo foi percebendo e sentindo que cada dia gostava mais dele e que cada dia estava mais ligada a ele. Já fazia parte do seu dia-a-dia e das suas rotinas. Percebeu também que se apaixonara profundamente por ele quando teve noção que mudar radicalmente a sua vida não lhe pesava. Não se importava de passar os dias inteiros na sua companhia, de ajustar as suas horas às dele, coisa que nunca fora capaz de fazer com ninguém. A conciliação, as horas marcadas, o seu espaço e o seu tempo invadidos sufocavam-na. Talvez nunca tivesse amado ninguém o suficiente para que a sua presença constante não constituísse um peso que ela não conseguia suportar.
Descobriu que há inúmeras maneiras de gostar; que não se gosta só de uma e que cada uma se reveste de muitas intensidades, muitos coloridos e tonalidades. Com ele já percorrera um leque variadíssimo delas e continuava com a sensação de que ainda a aguardavam muitas outras formas de amor a descobrir.
Foram crescendo juntos e ficando cada vez mais próximos. O tempo foi-lhe mostrando também que ela não poderia morrer. A ideia da morte deixava-a transtornada. Que seria dele? Quem tomaria conta de si? Ninguém o entendia como ela. Ninguém sabia lidar com ele, só ela. Nenhuma criança deve ficar sem a mãe, e o seu menino não fugia à regra com a agravante de que não era uma criança como as outras. Era especial, era diferente. Ela não sabia de que forma mas sabia que o era.
Essa percepção da diferença fazia com que a ideia da morte se tornasse ainda mais pesada, mais assustadora. Ninguém poderia ajudá-lo para além de si.
Só ela lhe sabia ler os olhos. Não os olhos de todos os dias, mas os outros. Só ela sabia o que estava por trás daquilo que ele dizia e só ela sabia o que os seus silêncios queriam dizer. Só ela lhe conhecia a alma. Falavam com os olhos, falavam com as mãos, falavam quando estavam calados. Iam-se descobrindo em conjunto. Ela ia-se revendo através dele. Muitas vezes era como se ele fosse um espelho dela.
Aconteceu-lhe, nos dias mais difíceis, cair na cama arrasada, sem forças, frustrada e totalmente perdida sem saber como lidar com aquele menino: Tinha medo de morrer durante a noite. Punha-se, então, a imaginar como seria se ele acordasse de manhã, fosse ter consigo à cama, e ela estivesse morta. Outras vezes começava a fazer mentalmente uma lista das pessoas que poderiam ocupar-se melhor dele se ela morresse. Ninguém servia. Por isto ou por aquilo, ninguém teria capacidade para lidar com ele. Iam estragá-lo, fazê-lo sofrer. Não saberiam ensiná-lo a viver com a diferença. Isto deixava-a angustiada, doida de dor e pensava tantas vezes que se um dos dois tivesse que morrer que fosse ele. Ela aguentaria melhor ficar sem ele do que imaginá-lo nas mãos de quem quer que fosse. Sabia o que ele iria sentir, sabia o abandono a que acabariam por votá-lo, iriam desistir dele porque pura e simplesmente havia dias e dias seguidos, tantas vezes, semanas e semanas, que pareciam intermináveis, em que era preciso uma força que lhe vinha não sabia de onde para aguentar aquele anjo que, de repente, se tornava no pior dos diabos. Mais doloroso que aguentá-lo era não conseguir entender o que desencadeava aquilo e como atenuar aquela raiva. Trazer de volta o menino meigo e feliz que ele era, fora muitas vezes tão complicado, era tão extenuante que ela tinha a certeza que ninguém mais para além de si o conseguiria fazer. Tirá-lo das suas mãos seria deixá-lo permanecer no extremo oposto daquilo que ele era; ninguém o suportaria, ninguém o aguentaria, nem ele a si próprio. Ficaria enclausurado dentro daquela dor que o transformava num ser intratável, capaz de desesperar qualquer um; viveria para sempre miseravelmente infeliz. Se alguém tivesse que ser miseravelmente infeliz que fosse ela.
Foi nessa altura que percebeu que em muita coisa também ela era diferente da maior parte das pessoas. De uma outra forma, contudo, diferente também.
Via nas caras que não o entendiam, o ar de estranheza que faziam, por ele e pela forma como ela lidava com ele. Por que raio ela o deixava ser diferente? Por que não haveria de o forçar a fazer o que os outros meninos da sua idade faziam? Às vezes davam-lhe palpites, faziam comentários, e isso ainda a fazia ter mais medo de morrer. Tudo o que lhe diziam tinha um peso brutal porque lhe mostrava que ela não podia morrer ainda.
Deu por si a ter pressa que ele crescesse. Cada ano que passava era um alívio porque significava que ele estava cada vez mais próximo de ser mais autónomo, mais maduro, mais, mais, mais, mais tudo o que lhe permitira sobreviver melhor sem ela. E cada ano que passava gostava mais dele, e cada ano que passava aproveitava melhor cada dia que passava com ele. Cada um de dele tinha o seu espaço e o seu tempo e depois havia o espaço de ambos e o tempo que era só deles.
À parte de tudo isto, morrer deveria ser um descanso. Talvez por pensar assim não a incomodava nada a ideia de não haver nada para além da morte. Achava mesmo que gostaria que assim fosse.
A morte da sua mãe fora a primeira morte que acompanhara de perto. Fora o primeiro funeral a que assistira. Andava já na casa dos trinta. Acordou de madrugada, no dia da cerimónia, e julgou que não conseguiria ir. Teve vontade de vomitar. Não tinha força nas pernas. Estava cheia de medo daquele ritual, do caixão, do coveiro, daquilo que só presenciara ainda nos filmes. Não houve velório. O último contacto que tivera com ela foi no dia em que morreu. Apesar de tudo o que sentia naquele dia sabia que morrer fora o melhor que lhe podia ter acontecido. Desejara-o tantas vezes, por ela, não por si. Nunca conseguira abandonar totalmente a cobardia e o egoísmo de manter sempre uma restiazinha de desejo que não morresse mesmo sabendo que aquilo não era viver. Pensando nela, a ideia de que a morte pudesse ser uma qualquer forma de prolongamento da vida a assustava. Tudo tem que ter um fim e a vida também.
Durante bastante tempo tivera muita dificuldade em “encaixar” dentro de si a morte dela e, pela primeira vez, lhe agradou pensar que talvez ela tivesse algures, sabe-se lá por onde e mantinha esperanças, de que como era sua mãe e, por isso a amaria incondicionalmente, haveria de arranjar forma de lhe fazer saber que não a tinha largado, que nunca se esqueceria de dela. Essa ideia, embora não lhe tirasse a dor, sossegava-a.
Ela queria saber se estava bem. Claro que estaria bem, bastava-lhe ter morrido para estar bem. Era um sentimento profundamente egoísta. No centro de tudo aquilo estava ela, estava a dor que queria atenuar, estavam as suas saudades. Querer que ela não tivesse “acabado” prendia-se mais consigo do que com ela.
Depois, há o filho e por ele ficava a pensar na continuidade, no que significará a “continuação da existência no outro”, e isso deixava-a sem saber o que queria face à morte.
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