Ilda, Ilda, Ilda e novamente Ilda.
Sexo não tem nada de especial. Mas tem. É como respirar? É uma necessidade vital?
Se fosse noutros tempos, o meu cesto dos papéis estaria atulhado de folhas amarrotadas. Escrevo, apago, escrevo, apago. Irrito-me, impaciento-me. Não chego a perceber porquê tanta insatisfação, tanta hesitação. Talvez não tenha chegado ainda o momento de falar sobre Ilda, mas tenho forçosamente que o fazer. Já não consigo aguentá-la mais, preciso de sossegar.
Sexo é um tema como os outros, como outro qualquer. Talvez não seja o sexo em si, talvez seja Ilda. Talvez seja eu. Falar sobre sexo em termos gerais e vagos não custa nada, não tem nada de especial mas falar nele abordando o tal lado, o lado de Ilda, será talvez como escrever: tem tudo de especial. Falar de sexo é falar da intimidade, daquilo que de mais nosso existe. Leva-nos à tal nudez. Não se pode falar dele sem nos despirmos, (embora o possamos praticar sem o fazermos), temos inevitavelmente que nos expor e será talvez essa exposição que me faz gaguejar. Será isso que Ilda faz? Pratica-o vezes sem conta sem se despir?
Ilda baralha-me. Não é a “prática de sexo puro e duro” que me incomoda mas a recusa do orgasmo, de tudo aquilo que possa de alguma forma causar-lhe qualquer prazer físico, exigir do outro o esquecimento de si, o facto de o sexo ser apenas o outro. Nem a prática de sexo solitário me parece tão desprovida de companhia, tão só. Há sempre um outro mesmo que fisicamente ausente. Também não é a recusa do afecto, das carícias, da ternura. Todas essas recusas faziam sentido para mim se o fim último daquela fornicação fosse o orgasmo. Assim, não sei o que pensar. O prazer de ver o outro rebolar-se de satisfação esquecendo-se de que é ela que o conduz àquele estado faz todo o sentido em muitas circunstâncias da vida, mas na cama? E logo na cama que é o local que supostamente procuramos para nos fundirmos com alguém. Lá, podemos recusar a nudez, a entrega pode ser maior ou menor, podemos entregar de nós tudo ou apenas aquilo que quisermos, mas não entregar nada de si, não retirar nada para si é algo de profundamente estranho. Fico com a sensação de que Ilda precisa daquilo, tanto quanto Lis dos orgasmos; o que está por trás dessa sua necessidade é que me parece insondável. Encontro uma possível justificação: a necessidade profunda e absoluta de dominar o outro. Uma forma de exercer o seu poder sabendo que o outro inevitavelmente fraquejará, deixar-se-á dominar? A razão pela qual o prazer num “acto sexual deveria ter apenas uma única direcção”, só faz sentido se entendida do ponto de vista do dominador face ao dominado.
Num ponto estamos de acordo. Ter um orgasmo pode ser “fraquejar, deixar-se cair na tentação do egoísmo”. Num outro ponto coincidimos também, ou quase: “o orgasmo acabava por ser uma fraqueza”.
Não consigo pensar num local onde o egoísmo se revele de forma mais genuína e espontânea do que na cama. É lá também que se avalia inequivocamente a força e a extensão da tentação; a nossa capacidade de nos soltarmos e os limites que pretendemos colocar ou não nessa nossa libertação.
O sexo é sem dúvida poderoso. É libertador, desanuvia tensões, pode fazer-nos sentir gente, fazer-nos sentir vivos mas pode ter também um lado perigoso e perverso. O desejo domina-nos facilmente. Essa, porém, é a menor das nossas fraquezas A fraqueza pode ir muito mais além do que o simples facto de nos abandonarmos e sucumbirmos ao desejo. A pior delas é deixar que o prazer invada o nosso íntimo. Quando nos lançamos nuns braços ficamos vulneráveis, perdemos muitas vezes todas as defesas. Independentemente do grau de entrega, o prazer naquele instante amolece-nos. A intensidade desse amolecimento depende profundamente da sensibilidade do nosso amante, da sua capacidade para nos ler os olhos, sentir a pele, do toque dos seus dedos, dos requintes com que nos percorre quando se lança na descoberta ou redescoberta do nosso corpo. A sintonia que existe ou se cria, aquilo que esperamos dele e aquilo que temos a percepção que ele espera de nós são decisivos em proporções inversas para o prazer que obtemos e para a nossa vulnerabilidade, para que nossa fragilidade se revele.
Não raras vezes vivemos o dia-a-dia tentando passar por cima daquilo que nos incomoda, que nos faz mal, que nos dói, armando-nos de capa e espada para enfrentar os nossos dragões. Depois, precisamos que mais não seja, de tempos a tempos, de largar a capa e a espada e esquecer um pouco as batalhas, retomar fôlego. Precisamos do merecido descanso do guerreiro e é nesse momento que nos tornamos vulneráveis, e é nesse momento que o orgasmo é tão libertador quanto perigoso.
É no momento em que me nos soltamos, em que estamos prestes a chegar às estrelas, em que o mundo deixa de existir e nós voamos para outra dimensão, que tudo o que recalcámos, que escondemos, de que fugimos nos pode invadir e percorrer com a mesma intensidade que aquela vontade tão profunda de não conter mais o desejo. Naquele momento em que a fraqueza já se apoderou de nós e já não é possível e já não queremos parar nem travar a ânsia de chegar ao firmamento, que sabemos que vamos rebentar, então, o prazer, a tristeza e a frustração fundem-se num misto de gozo e dor que invariavelmente podem desencadear um choro convulsivo, silencioso. Nesse momento estamos totalmente desprotegidos e indefesos. Precisamos daquele choro, deste grito, tanto quanto daquele orgasmo para soltar o que nos oprime, para nos sentirmos leves. O grito surge na proporção inversa à nossa capacidade de entrega àquele amante.
Precisamos do sexo e do orgasmo para sobreviver. Contudo, por vezes é preciso fugir dele, temos que nos manter afastados da “loucura da carne” que nos liberta, que nos faz tanto bem mas que ao mesmo tempo nos domina e deixa totalmente desarmados, amolecidos. A noção da nossa fragilidade é decisiva para que consigamos gerir o nosso corpo, a nossa vontade, o nosso desejo.
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