quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Diário de uma louca

Há algum tempo que venho pensando em Lena. Nela, revejo-me; de outra forma não poderia. Só através dela consigo olhar para mim. Olhando para ela, vejo-me; quando a descubro é a mim também que estou a descobrir, como se me pudesse ver escondida nela sem que assim precise de me despir.
Lena e eu temos coisas em comum. Seguimos sempre, sem desistir, sem que ninguém consiga saber ao certo o que levamos cá dentro, o que verdadeiramente nos move. Mesmo quando por momentos duvidamos, seguimos e passamos a acreditar; arranjamos forma de o fazer. Afastamos as dúvidas, enxotamos as verdades que se tivéssemos de encarar nos fariam ficar pelo caminho. Fazemo-lo sem saber como o fazemos. Mantemos uma ingenuidade e uma infantilidade que nos permitem sobreviver porque só seguindo, buscando e acreditando continuamente conseguimos viver. Esse é o nosso alimento, a nossa força anímica. Talvez nunca encontremos o que buscamos mas não podemos ter essa consciência porque é isso que nos faz avançar; não nos podemos permitir duvidar, deixar de acreditar.
Mantemos com convicção a esperança que nos conduz, carregada de possíveis e possibilidades que talvez só nós vejamos.
Aos olhos dos outros, a nossa esperança nunca acaba, nunca morre, nada nos demove. Parecemos optimistas e ingénuas. Não sei se é isso que verdadeiramente somos ou antes que temos que ser.
Quem olha para nós vê paz e tranquilidade num rosto que parece não deixar reflectir a alma. Facilmente parecemos demasiado passivas, intocáveis, inatingíveis, inabaláveis na nossa calma. Recebemos as piores notícias e atravessamos os maiores medos com um ar sereno, impenetrável, silenciosamente, como se o nosso íntimo esbarrasse contra o nosso rosto, incapaz de o transpor. Ninguém chega verdadeiramente a saber como somos e o que somos, ou como estamos e o que sentimos porque jamais nos conseguimos revelar por completo, deixar que nos atravessem e penetrem no mais fundo de nós e não é que nos escondamos com algum propósito, é antes algo intrínseco, involuntário; por isso, a imensa solidão que sempre nos acompanha. Amamos a transparência mas não somos verdadeiramente capazes de a atingir, nem a sós connosco, convictas de que o fazemos.
Há algo de secreto em nós que não sabemos de onde vem. Esse secretismo reside nas mentiras que dizemos a nós próprias propositadamente, sem verdadeira consciência de que o fazemos, como um acto de sobrevivência, por incapacidade de enfrentar o que realmente somos e sobretudo o que vemos. Alcançamos muitas vezes muito mais além do que gostaríamos, enxergamos e sentimos o que nos rodeia de forma intensa, contrariando a pureza que precisamos para levar por diante os nossos sonhos. Quando, ocasionalmente, esbarramos com a realidade, crua, quando olhamos para o fundo de nós, nos enfrentamos olhos nos olhos, quando não conseguimos superar as evidências, anulá-las com as nossas fantasias mais profundas, quando a nossa capacidade de análise se sobrepõe, sofremos profundamente; ficamos desprotegidas, demasiado expostas e frágeis; perdemos as forças e a crença ingénua e pueril que nos faz subir montes e vales, percorrer quilómetros e quilómetros acreditando naquilo em que mais ninguém acredita, numa recusa obstinada em desistir porque para nós há sempre um possível e o pior que nos sucede é deixar de acreditar nesse possível, no nosso possível.
Não podemos viver sem um ideal muito íntimo, sem sonhos muito nossos, que perseguimos incessantemente; criamos um mundo paralelo, impenetrável, que é o nosso refúgio, o equilíbrio para que possamos sobreviver no mundo dos outros e se o perdemos, ficamos desasadas, sem saber para onde seguir e como seguir.
Não chegaremos a despir-nos totalmente porque há verdades que não podemos enfrentar, constatações que não podemos fazer. Vestimos a nossa racionalidade. Nunca poderemos suportar ver-nos totalmente nuas. A nudez total mata-nos, mostra-nos o que não podemos ver. Não somos suficientemente fortes para lhe resistir, ou ela é demasiadamente cruel aos nossos olhos. Essa é talvez a única coisa que não suportamos. Nunca nos chegamos a conhecer verdadeiramente, porque nos enganamos constantemente e, contudo, sofremos porque os outros não chegam ao fundo de nós, numa impossibilidade que somos nós que criamos.

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