quinta-feira, 12 de maio de 2011

Avessos da vida

Era pesado o ar. Irrespirável. Pairava a contenção num emaranhado de culpas por cuspir, de frustrações e desgaste amontoados. Era o cansaço dos anos. Tantos e tantos anos de anseios fracassados, de esperanças vãs e de cedências. Ela, mantivera-se sempre alerta, empenhada, solicita. Pior que tudo, crente. Misturava as atenções que lhe dedicava com as obrigações de esposa. Justificava assim um amor sem tamanho, uma paixão que não houve pontapé que amolgasse, nem traição que apagasse. Ele, seguia os sonhos e os delírios ciente do amparo que sempre encontraria. De quando em quando, dizia-lhe que ela era a mulher da sua vida e, seguia, talvez, mais leve para as ausências e para os braços da próxima amante. Ela enternecia-se. Brilhavam-lhe os olhos e desculpava-o porque ele era um homem, tinha fraquezas, e afinal até a escolhera a ela. Entre tantas, foi a ela que ele quis. Vasculhava e vasculhava impaciente e descobria-lhe virtudes às mãos cheias. E acreditava. Seguia-o cegamente. Para onde ele ia, ela ia também. Largava tudo, agarrava nos moços e nas malas e recomeçava onde quer que fosse.

Mobilava todas as casas com o mesmo esmero que a esperança no recomeço. E acreditava de novo. Os ares eram outros, os colegas, a vida. E ela ajudava. Tudo era pensado à sua medida. O conforto da casa. As crianças tratadas e apaziguadas para que tudo decorresse na maior tranquilidade quando ele chegasse do trabalho. Ela arranjava-se para o receber. Esperava por ele para jantar ou noite dentro, se preciso fosse, quando os afazeres assim o obrigavam. Recebia-o sorridente, fresca, pronta para o ouvir falar dos seus dias preenchidos, das vidas que salvara, dos casos complicados, das múltiplas actividades em que se envolvia, dos convívios que rapidamente arranjava onde quer que chegasse. Sentava-se, cansada dos diabretes de quem nunca se queixava, sedenta da sua companhia, das suas palavras, de uma vida que ela não tinha para além das crianças e da casa. Acordaram que assim seria. E talvez não pudesse ser de outra forma. Sempre com a casa às costas e os gaiatos a nascer uns atrás dos outros, não era fácil arranjar trabalho.
Ele chegava, sentava-se também, cruzava a perna, ela olhava-lhe para as meias e, nesse instante, deixava de o ouvir. Despedaçava-se. Acenava com a cabeça mas já não participava na conversa, limitava-se a ficar ali, sentada, sem forças para se levantar, para nada. Talvez nem vontade de o agredir tivesse. Se ele notasse, se não estivesse muito ébrio, se insistisse, ela era capaz de lhe dizer, sem se alterar, sem se insurgir, apenas a voz lhe tremia.
- Tens as meias do avesso.
- Lá estás tu.
E o silêncio instalava-se.

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